Recebemos mais dois livros do Monteiro Lobato, da coleção BIBLIOTECA LOBATO, que tem como organizadora Marisa Lajolo e ilustrações da Lole, da editora Companhia das Letrinhas.
E meu primeiro impulso é dizer que as obras são lindas: Livros grandes, de capa dura, com ilustrações coloridas, elaboradas, diferentes, design limpo e bonito, rodas de rodapé com explicações de termos que são politicamente incorretos, palavras que caíram no desuso, ou sobre personalidades pouco conhecidas das kids de hoje em dia.
Porém, este pensamento é logo interrompido, pelo texto que algumas vezes traz vozes que perturbam (não de um jeito positivo)... E daí, uma parte de mim, que gosta da parte estética do livro, entra em conflito com outras parte, que não sabe o que fazer com o texto que parece não mais aceitável, hoje em dia.
Para a pós de Literatura Infantil (do Instituto Vera Cruz), escrevi um texto sobre o assunto. Vou deixar aqui pra vocês. Vamos conversar?
O Lobato que ecoa em mim.
Existe uma frase de Jean-Paul Sartre que eu admiro bastante e tento aplicá-la sempre na minha vida:
“Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.”
Com base nela, não posso botar a culpa das minhas decisões, atitudes e escolhas, nas heranças que recebi de todo legado histórico, social, cultural ou familiar.
Se somos herdeiros de Lobato, posso me apropriar de sua obra, usá-la, ignorá-la, tentar tirar só as coisas que considero positivas, éticas e aproveitáveis, ou posso transformá-la através da minha palavra, da minha voz.
O primeiro contato foi pela TV, com o programa Sítio do Pica-pau Amarelo, em 1977. Depois com os disquinhos que vieram do programa e com a boneca da Estrela (que ainda tenho até hoje). Não li os livros quando criança, nem quando adolescente. Fui lê-los anos depois, quando fui mãe.
Muito tempo se passou até encontrá-lo novamente na lista de materiais do meu filho, em 2016, quando a professora de português pediu para lerem o livro REINAÇÕES DE NARIZINHO do Lobato, com ilustrações do Paulo Borges, da editora Globo. Mas como tínhamos em casa o mesmo livro, mas da edição da Biblioteca Azul, dei pra ele ler, dizendo que era a mesma coisa. Ele fez uma leitura sozinho, sem interferência ou mediação alguma. Depois em seguida começamos a leitura em conjunto do CAÇADAS DE PEDRINHO, também da Biblioteca Azul. Mas, confesso, não vi racismo e também não vi caçar uma onça sendo uma coisa errada. Já que, como Pedrinho, eu passava as férias escolares, 30 dias, na fazenda da minha avó no interior do Rio Grande do Sul. Eu não tinha acesso as “armas”, mas meus primos (que regulavam de idade comigo), que vivam lá, tinham facas, canivetes, montavam em cavalos, tinham espingardas e caçavam pequenos animais que atavam o gado. Vi a história como uma coisa natural do interior do Brasil. Mas não lemos todo livro, não recordo o motivo, mas interrompemos a leitura e esquecemos de continuá-la. Em 2018, Monteiro apareceu novamente na lista de paradidáticos da minha filha, mas agora em formato de quadrinhos: LOBATO EM QUADRINHOS: DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES, de Denise Ortega, da Globinho. Ela também leu o livro sem mediação e sem leitura compartilhada.
Somente após a NOSSA leitura em sala de aula, do livro Reinações, que fui me dar conta de tanto racismo dentro da obra. E com esse mal estar, fui perguntar para os meus filhos, como tinha sido tratado o tema em sala de aula. Ambos disseram que tiveram que fazer provas sobre o livro, respondendo aquelas questões básicas: quem é o personagem principal?, onde moram?, quem fala isso ou aquilo? Etc, … Perguntei se a professora falou sobre as partes racistas dos livros e em ambas as escolas (um estuda em um colégio público, com muitos colegas negros e outro na rede privada, com poucos colegas negros), nenhuma das professoras tinha abordado o assunto. E isto me chocou. As leituras têm o poder de nos fazer perceber e mudar, não têm? E que bom termos a possibilidade de ler de novo... E mostrar/conversar sobre algo que não vimos na primeira leitura.
E sim ele é racista. Muito racista. E daí fica aquela dúvida: ler com as crianças (com as minhas, tuas, nossas, na escola, em casa, na fazenda, numa casinha de sapê) e discutir como isto é inadmissível ou não ler Lobato, ler outras coisas, outros autores ou ainda, ler versões adaptadas, mais brandas, dos textos dele?
Me pergunto porque a palavra escrita, ainda mais escrita por ele, pode ser vista como "o jeito certo de se agir" (ainda mais nesta época estranha que vivemos no Brasil), já que ele é um autor de renome. De tanto ver expressões racistas no texto a criança, pode achar isto natural e NÃO É! Não pode ser NUNCA. Então, ler ou não ler Lobato?
Quando conversos com meus amigos, perguntando se eles leram Lobato para seus filhos, poucos disseram que não leram e nem vão ler. A maioria diz que leu, que contextualizou o momento histórico do Brasil e mundo, na época que os textos foram escritos. Mas eu sei que mesmo lá, “naquela época”, muita gente não concordava com esta visão do autor. Ele como branco, fazendeiro, homem e rico, conseguiu difundir a visão dele e espalhar pelo Brasil inteiro e ficou como “a verdade”, e isso é uma das coisas que me incomoda de lê-lo.
Eu não tenho mais tanta certeza da leitura... E acho que adaptar, mascara a realidade e peso das palavras e censurar também não é o caminho. Mas se a leitura provocou um incômodo em mim, que sou branca, posso começar a imaginar o horror que provoca, em quem é negro. E criança absorve tudo.
Penso nas minhas amigas negras lendo algumas destas passagens do livro Histórias da Tia Nastácia para seus filhos:
-Esta história - ainda está mais boba que a outra. Tudo sem pé nem cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que era de um jeito e foi se alterando de um contador para outro, cada vez mais atrapalhada, isto é, foi perdendo pelo caminho o pé e a cabeça.
-Eu (...) acho muito ingênua esta história de rei e princesa e botas encantadas, disse Narizinho. Depois que li Peter Pan, fiquei exigente. Estou de acordo com a Emília
-Pois cá comigo - disse Emília - só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!
Fico pensando em como as crianças vão se sentir, ao ouvirem outras crianças (personagens) falarem mal de sua cultura, de seus avós, tias, mãe e de suas histórias? Como elas irão reagir à forma que Lobato representa o negro, de uma forma estereotipada, rasa, subalterno, merecedor de xingamentos e humilhações? Como tudo isso irá ser processado dentro da cabeça de uma criança, principalmente de uma criança negra e de seus pares? Como não pensar nelas ao falar da obra de Lobato? Não consigo não sentir um peso, um aperto dentro do peito por ele desvalorizar tudo que vem do povo, da periferia, do oral, do que é passado de pai para filho. Como ficar indiferente ao valorizar só o que vem de fora, do exterior? Dos livros escritos por grandes nomes da literatura como o próprio Lobato? Só eles têm direito a uma voz? A serem “A VOZ VERDADEIRA” que representa uma época?
Como disse a Luciana Bento, ao falar de Lobato no Instagram @amaepreta: “Vemos personagens admirados sendo racistas e mesmo assim eles continuam a ser ídolos, continuam a se destacar, como se o racismo que eles manifestam não tivessem realmente grande importância. Remete a uma associação imediata da negritude à escravidão, relativiza o racismo faz com que falas extremamente dolorosas pra crianças negras passem despercebidas por todos e reproduzindo uma estrutura social na qual negros são menos importantes, menos respeitados etc…. Provavelmente só ler Monteiro Lobato não faça alguém racista, e que cada vez mais as pessoas têm discernimento pra perceber as inadequações das falas das personagens. E ainda compete com a admiração das pessoas pelos personagens, pelo autor, pela história. O que acaba diminuindo o impacto do racismo para os leitores não negros. E acaba mostrando que até pessoas legais são racista de vez enquanto e tá tudo bem. Vocês enxergam o racismo pelo lado que menos dói.” E tem importância essa fala. Tem importância ouvir o lado que mais dói.
Mesmo nesta nova edição de Reinações, publicado pela Companhia das Letrinhas, só na apresentação é que tratam o racismo como uma marca de um tempo (como se todo mundo fosse racista e fosse tudo bem SER racista no começo do século XX) e como se hoje tudo já estivesse superado. E claro que não é o caso. E para piorar a palavra racismo sequer é mencionada, tornado ainda mais superficial a problematização. Nas notas, que parecem até “fofas”, as personagens abrandam, quase que desculpando, mas sem desculparem-se, de usar termos racistas.
“Mais comum, entre os textos contrários às críticas à obra de Lobato, foi o recurso a uma concepção de literatura que reivindica sua imunidade a qualquer questionamento ético, com a recusa a avaliações “morais”, “éticas” ou “políticas” de obras literárias bem como a sua redução a instrumento pedagógico. O que se propõe, no caso, é a blindagem da literatura a indagações externas...”” (Marcos P. Natali)
Literatura é o lugar onde tudo é possível, mas pode estar acima da ética? Acima dos outros?
Por um lado, acho que ler estes textos deixam vivas passagens marcantes da história que não devem ser repetidas. Devemos proibir e não ler todos os livros sobre as Grande Guerras Mundiais? Sobre o Holocausto? Não devemos ler sobre feminicídio? Sobre as desigualdades das periferias? Pois estas leituras podem ferir pessoas que também passaram ou passam por isso. Ou é melhor ler, sem pedagogizar, mas ler para discutir de forma construtiva, crítica e consciente? Eu, pessoalmente, acho importante ler tudo, como mãe, como professora, como cidadã livre, para EU ter minha própria opinião. Para ninguém decidir por mim, o que devo ou não ler ou o que devo ou não achar de qualquer obra. Mas não acho que todo mundo pense assim. E me colocando no lugar do outro...
Será que uma medição consciente (o que é ser/estar consciente?) é possível? Será que é possível haver um diálogo saudável com suas histórias sem deixar de aproveitar a criatividade e imaginação que há em sua obra? O livro permite a formação crítica e consciente dos leitores? Não sei se todo mundo está capacitado em mediar este livro, pois muita gente que conversei, não vê o racismo. E daí pode virar modelo de comportamento justamente por ser Lobato quem escreveu. Eu tô bem dividida. Eu que trabalho há mais de 20 anos com literatura infantil e mediação, literalmente larguei os livros nas mãos das minhas crianças pois achei que haveria diálogo em sala de aula e que achava que não teria problema ler Lobato, sem muita conversa depois e sem eu ter relido as obras, para ter uma conversa com eles também. Se eu errei feio, e sinto muitíssimo com isso, imagino como fica a cabeça dos outros 299 colegas do meu filho que leram e, provavelmente, a grande maioria não viu/percebeu racismo, ou se incomodou e não falou que não gostou (pois quando o filho/mãe não gosta de um livro, imediatamente ele aparece nos grupos de Whatsapp das mães!).
O que eu acho é que a herança Lobatiana fez foi dar voz para todos os lados, as pessoas estão discutindo o racismo mais publicamente, de uma forma não velada. E muitos estão enxergando o racismo nas linhas e entrelinhas dos textos, em função destas discussões. Não estão lendo por que ele é imprescindível, mas, muitas vezes para pôr em cheque as “verdades” que estavam sendo consideradas verdadeiras e ditas por uma só voz. Com as redes sociais, há muitas falas, (poucas escutas, também, claro), mas quem não tinha voz, pode expressar-se, sem medo e chamar mais pessoas para debaterem o assunto.
Será que não temos várias outras histórias e vários outros autores na literatura infantil que podem ocupar esse lugar de estimular a fantasia de um modo que seja bom pra tudo mundo? Será que, em nome da “livre expressão”, “só se conhece o bem, conhecendo o mal” e “O livro permite a formação crítica e consciente dos leitores”, é preciso reler uma obra que traz de volta valores (cada vez mais empoderados pelo governo atual) que não nos ajudam a combater de verdade o racismo existente? Será que falando só do racismo, estamos reduzindo a obra do Monteiro Lobato? Eu não consigo tomar partido. Ainda não sei o que fazer com a herança que Lobato deixou… O assunto ainda me incomoda muito. Lobato ecoa dentro de mim de uma forma que me perturba e acende uma luz de alerta, para eu reolhar cada texto que já li e que irei ler de agora em diante.
E você, o que pensa disto tudo?
Bibliografia:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. São Paulo: Biblioteca Azul. 2015
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo: Globinho. 2017
LOBATO, Monteiro. Minotauro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Biblioteca Azul. 2014
LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019.
ORTEGA, Denise. Lobato em Quadrinhos: Os Doze Trabalhos de Hércules. São Paulo: Globinho. 2007.
@amaepreta
A figura do negro em Monteiro Lobato:
https://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/outros/lobatonegros.pdf
Quando a afro-bibliodiversidade lê Monteiro Lobato:
http://revistaemilia.com.br/quando-a-afro-bibliodiversidade-le-monteiro-lobato/
“Questões de herança: Do amor à literatura (e ao escravo)”
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/artigos/criticas/ArtigoMarcosNatali1QuestoesdeHeranca.pdf